sábado, 28 de maio de 2011

Ilustração do livro MECÂNICA DO CORAÇÃO

Resumo




Livro pequeno, de cerca de 140 páginas, A Mecânica do Coração é um curto romance com pitadas de Steampunk que conta uma história clássica sem tempo nem espaço.

No ano de 1874, no dia mais frio de que há memória, nasce um rapaz na cabana de Dr.ª Madeleine, em Edimburgo. A cabana é, no entanto, tão pouco vulgar como a sua dona, uma médica inventora que, ao perceber que o coração da criança está gelado, o liga a um relógio de cucos. A mãe, jovem, abandona a criança aos cuidados da médica e nunca mais retorna.

Ao contrário das outras crianças que Madeleine acolhe, o rapaz de coração de cuco, Jack, nunca é adoptado, e permanece na cabana, protegido da maldade do Mundo, com a desculpa de que o seu coração será demasiado frágil. Ainda que os avisos de Madeleine sejam constantes, Jack apaixona-se na primeira viagem à cidade, por uma rapariga com voz de rouxinol e de grossos óculos que a tornam encantadoramente desastrada.

Com o intuito de a voltar a ver, Jack convence Madeleine a frequentar a escola local, mas ao invés da rapariga, encontra o anterior namorado, que não perderá nenhuma oportunidade para ridicularizar o rapaz com um cuco no coração.

Jack relembra por vezes Mattie, a personagem de The Alchemy of Stone, pelas características invulgares do seu coração, um órgão com chave própria ao qual tem de se dar corda para que a personagem continue viva. Este é um dos pormenores engraçados que torna a história especial, ainda que não a tenha achado espectacular – é uma leitura leve e recomendável.
















Capa
















Nascimento
“-abre os olhos! Vê chegar este minúsculo floco que fabricaste!
Madeleine diz que pareço um pássaro branco com grandes patas. A minha mãe responde que, se não olha para mim, é porque com certeza não quer que lhe façam uma descrição.”









Primeira ida á cidade
“decidiu finalmente levar-me à cidade. Há tanto tempo que lhe peço…”









Primeiro encontro
“Uma rapariga minúscula, com ar de árvore em flor, avança à frente do instrumento e começa a cantar. O som da sua voz lembra o canto de um rouxinol, mas com palavras.”















Primeiro dia de escola
“Após um rápido adeus à minha família improvisada, atravesso o imenso portal – até parece que me inscreveram numa escola de gigantes.”














Viagem a Paris
“Comigo esta tudo bem. Neste momento estou em paris.”









A dançar
“A jovem fecha os olhos imensos, ergue os braços e bate palmas como se estivesse a tocar castanholas. “







Primeiro Beijo
“As nossas bocas aproximam-se. O tempo abranda, quase pára. Os nossos lábios completam-se, misturam-se delicada e intensamente.”


Relógio
“Quando abro finalmente os olhos, avisto o meu velho relógio em cima de uma mesinha de cabeceira. É esquisito poder pegar nele.“







Árvore/s da Cidade



Outras Ilustrações














Parte da história que passei
Primeiro, não toques nos ponteiros.
Segundo, domina a tua cólera.
Terceiro, nunca, mas nunca te apaixones porque senão,
no relógio do teu coração, o grande ponteiro das horas
trespassar-te-á a pele, os teus ossos implodirão
e o mecanismo avariar-se-á de novo.


1
Neva em Edimburgo neste dia 16 de Abril de 1874. Um frio terrível, paranormal, que fecha a cidade a cadeado. Os velhos dizem que é capaz de se tratar do dia mais frio do mundo. Dir-se-ia que o sol desapareceu para sempre. O vento corta, os flocos de neve são mais leves do que o ar. Explosões surdas de puro branco! Não se vem mais nada. As casas parecem locomotivas a vapor, o fumo cinzento exalado pelas suas chaminés faz crepitar um céu da cor do aço.

Edimburgo e as suas ruas escarpadas metamorfoseiam-se. Umas a uma, as fontes transformam-se em girândolas de gelo. O velho rio, habitualmente tão sério no seu papel de rio, estende-se até ao mar disfarçado de lago de açúcar glacê. O fragor da tempestade faz um ruído de vidros a quebrar. O orvalho congelado faz maravilhas, cobrindo de lantejoulas os corpos dos gatos. As árvores parecem grandes fadas em camisa de noite, dançando de braços abertos à luz do luar, vendo as caleches a derrapar nas calçadas geladas. O frio é tal que os pássaros gelam em pleno voo antes de se esmagarem no solo. O barulho que fazem ao cair é incrivelmente suave, nem parecem um som de morte.
E é neste dia mais frio do mundo que me preparo para nascer.

A coisa passa-se numa velha casa empoleirada no topo da mais alta colina de Edimburgo – Arthur´s Seat –, um vulcão de quartzo azulado no cimo do qual repousam, segundo se diz, os restos mortais do velho rei Artur. O telhado da casa, pontiagudo, é incrivelmente alto. A chaminé, em forma de faca, aponta para as estrelas. A lua amola nela as suas fases. Nada nem ninguém em redor, apenas árvores.
O interior é todo de madeira, como se a casa tivesse sido esculpida a partir de um enorme pinheiro. Parece uma cabana: vigas rugosas é discrição, janelas pequenas tiradas do cemitério dos comboios, uma mesa baixa talhada no cepo de uma árvore, inúmeras almofadas de lã cheias de folhas mortas fazem lembrar um ninho. Nesta casa acontecem muitos partos clandestinos.
É aqui que vive a doutora Madeleine, a parteira dita louca pelos habitantes da cidade, bastante bela apesar da idade. O brilho dos seus olhos mantém-se intacto, mas o seu sorriso parece falso.
A doutora Madeleine traz ao mundo os filhos das prostitutas, das mulheres desprezadas, demasiado novas ou demasiado infiéis para dar a luz no circuito clássico. Para alem dos partos, a doutora Madeleine adora consertar as pessoas, é grande especialista das próteses mecânicas, dos olhos de vidro, das pernas de pau… encontra-se de tudo no seu atelier.
Neste fim do século XIX, pouco falta para que a tomem por feiticeira. Na cidade diz-se que mata os recém-nascidos para os transformar em escravos ectoplásmicos e que se deita com toda a espécie de aves para dar origem a monstros.

Durante o longo trabalho de parto, a minha jovem mãe observa distraidamente, pela janela, os flocos de neve e os pássaros a morrerem silenciosamente. Dir-se-ia uma criança a brincar as mamãs e aos papás. Os seus passatempos são melancólicos. Como sabe que não ficará comigo, mal ousa olhar o ventre prestes a eclodir, e quando a minha chegada se torna premente, as suas pálpebras fecham-se sem se crispar. A sua pele confunde-se com lençóis, como se a cama a aspirasse, como se fosse derreter-se a qualquer momento.
Chorava ao subir a colina. As suas lágrimas geladas soavam ao cair no solo, quais pérolas de um colar partido, formando atrás de si um tapete de berlindes brilhantes. A minha mãe patinava, mas continuava, ate que a cadência dos seus passos se tornou demasiado rápida. Os calcanhares emaranharam-se-lhe, os tornozelos vacilaram e ela caiu violentamente para a frente. No interior do seu ventre, fiz um trabalho de mealheiro partido.


A primeira coisa que vi foi a doutora Madeleine. Os seus dedos agarraram-me no crânio cor de azeitona – uma bola de rugby em miniatura – depois encolheram-se, descansados.
A minha mãe prefere desviar o olhar. Seja como for, as suas pálpebras recusam-se a funcionar.
-abre os olhos! Vê chegar este minúsculo floco que fabricaste!


Madeleine diz que pareço um pássaro branco com grandes patas. A minha mãe responde que, se não olha para mim, é porque com certeza não quer que lhe façam uma descrição.
-não quero ver nada, não quero saber de nada!
De repente, qualquer coisa preocupa a médica. Madeleine apalpa-me o torso minúsculo e o sorriso forje-lhe do rosto.
- O coração esta muito duro, acho que esta gelado.
- Já sei, já sei, quem tem coração gelado devo ser eu, uma mãe tão desnaturada…
- Não é isso, o coração dele está mesmo gelado! – replica ela, abanando-me, fazendo um barulho de caixa de ferramentas.
A doutora Madeleine atarefa-se. A minha mãe espera sentada na cama, a tremer, mas já não de frio. Parece uma boneca de porcelana fugida de uma loja de brinquedos.

Lá fora neva cada vez mais. A hera prateada trepa pelas paredes. As rosas translúcidas inclinam-se para a janela, colorindo as avenidas. Os gatos transformam-se em gárgulas, como as garras presas nos algerozes.
No rio os peixes tentam respirar, imobilizados. Toda a cidade está nas mãos de um soprador de vidro que exala um frio que morde as orelhas. No espaço de alguns segredos apenas, os raros corajosos que se atrevem no exterior vêem-se paralisados, como se um deus qualquer os acabasse de apanhar numa fotografia. Levados pela inércia, alguns começam a deslizar, como se num bailado extremo, quase belos, cada um com o seu próprio estilo, quais anjos retorcidos, com as roupas especificas ao vento, quais bailarinas de caixa de musica já quase sem corda, exalando o ultimo fôlego.
Por toda a parte os transeuntes, gelados ou quase, assemelham-se ás fontes. Só os relógios continuam a fazer bater o coração da cidade, como se dada fosse.

«Fartaram-se de me dizer para não vir aqui. Fartaram-se de me dizer que esta velha era maluca», pensa a minha mãe. A pobre rapariga está morta de frio. Parece-me que a médica vai ter mais trabalho com o coração dela do que com o meu… quanto a mim, espero todo nu, deitado em cima de uma mesa, com o tronco estalado num torno de metal. Começo a sentir-me enregelado.
Um gato preto muito velho, com modos de paquete de hotel, encontra-se em cima da mesa da cozinha. A médica arranjou-lhe uns óculos. As armações verdes dão-lhe classe. O animal observa a cena com ar indiferente – só lhe falta um jornal de economia e um charuto.
A doutora Madeleine põe-se a mexer na prateleira dos relógios e tira vários modelos diferentes: uns angulosos de aspecto severo, outros arredondados, outros ainda revestidos de madeira e outros metálicos, pretensiosos atem à ponta dos ponteiros. Com um ouvido, a mulher escuta o meu coração defeituoso e com outro os tiquetaques. Os seus olhos semicerram-se, não parece satisfeita. Parece uma daquelas velhas que levam um quarto de hora para escolher um tomate no mercado, mas de repente o seu olhar ilumina-se.
- Este! – exclama ela, acariciando com a ponta dos dedos as engrenagens de um velho relógio de cuco.
O relógio deve medir cerca de quatro centímetros por oito e é todo de madeira, salvo o mecanismo, o mostrador e os ponteiros. O acabamento é bastante tosco. «Sólido», pensa a médica em voz alta. O cuco, tão grande como a falange de um dos meus dedos, é encarnado e tem olhos pretos. O bico, sempre aberto, fá-lo parecer um pássaro morto.
- Vais ter uma bom coração com este relógio! E fica bem com a tua cabeça de pássaros dez Madeleine, virada para mim.
Não me agrada nada a historia, mas como está a tentar salvar-me a vida , não discuto.
A doutora Madeleine põe um avental branco - está visto, vai mesmo cozinhar. Sinto-me como um frango grelhado que alguém se esqueceu de matar. A mulher vasculha numa saladeira, tira umas lunetas de soldador e tapa o rosado com um lenço. Já não a vejo sorrir. Madeleine inclina-se para mim e faz-me respirar um frasco de éter. As minhas pálpebras fecham-se, tão suavemente como umas persianas numa tarde de verão muito longe daqui. Já não me apetece gritar olho para ela enquanto o sono vai tomando lentamente conta de mim. Nela tudo é arredondado: os olhos, as maças do rosto tão enrugadas como duas maças reinetas, o peito. Uma verdadeira maquina de embalar. Mesmo que não tivesse fome, faria de conta que sim, só para lhe abocanhar os seios.
Madeleine corta-me a pele do peito com uma grande tesoura cujos dentes minúsculos me fazem cócegas na pele. A mulher mete-me o pequeno relógio por baixo da pele e começa a ligar as engrenagens ás artérias do coração. Trata-se de uma operação delicada, minuciosa. Madeleine serve-se de um fio de aço muito fino para dar uma dúzia de nós minúsculos. O coração bate de vez em quando, mas a quantidade de sangue enviada para as artérias é pequena.
- Que branco que é! – diz ela em voz baixa.
Chegou a hora da verdade. A doutora Madeleine coloca os ponteiros na meia noite…não acontece nada. O sistema mecânico não parece suficientemente forte para arrastar consigo as pulsações cardíacas. Por um momento perigosamente longo, o meu coração deixa de bater. A minha cabeça anda à roda, sinto-me como um sonho extenuante. A médica pressiona ligeiramente as engrenagens, de maneira a desencadear o movimento. «Tiquetaque», faz o relógio «bum-bum»,responde o coração, as artérias cobrem-se de vermelho. Pouco a pouco o tiquetaque acelera, assim como o bum-bum. Tiquetaque, bum-bum. Tiquetaque, bum-bum. O meu coração bate a uma velocidade quase normal. A doutora Madeleine tira suavemente os dedos das engrenagens e o andamento do relógio abranda. A mulher acciona de novo a máquina para relançar a mecânica, mas assim que tira os dedos o ritmo enfraquece de novo. Dir-se-ia que acaricia uma bomba, perguntando a si própria quando ira explodir.
Tiquetaque, bum-bum. Tiquetaque, bum-bum.

Os primeiros raios de luz reflectem-se na neve e entram pelas persianas. A doutora Madeleine está esgotada. Eu adormeci. Se calhar estou morto porque o meu coração deixou de bater à muito tempo.
De repente o canto do cuco ressoa tão forte no meu peito que tusso de surpresa. Com os olhos muito abertos, vejo a doutora Madeleine levantar os braços, como se acabasse de conseguir um penalti na final do campeonato do mundo.
A médica sutura-me o peito, como se fosse uma modista cheia de estilo. Não se pode dizer que fiquei estragado, antes que a minha pele envelheceu, que ficou com umas rugas género Charles Bronson, o que me dá uma certa classe. O mostrador está protegido com um penso enorme.
Será preciso darem-me corda todas as manhãs ou adormecerei para sempre.
A minha mãe diz que pareço um novelo de lã atravessado por duas agulhas, e Madeleine responde que assim é fácil encontrar-me caso me perca numa tempestade de neve.

É meio-dia. A médica acompanha a rapariga à porta com um sorriso caloroso, como sempre que há uma catástrofe. A minha jovem mãe avança docemente e, com os lábios a tremer, afasta-se, caminhando como uma velha dama melancólica apesar do seu corpo de adolescente, misturando-se com a bruma, transformando-se num fantasma de porcelana. Nunca mas a vi depois daquele dia estranho e maravilhoso.


2
Madeleine recebe visitas todos os dias. Os doentes que não têm dinheiro para pagar os serviços de médico «diplomado», quando partem qualquer coisa, acabam por aterrar em casa dela. A médica gosta de mexer nos corações das pessoas e fala com elas enquanto lhes acerta ou concerta os mecanismos. Sinto-me agradavelmente normal com o meu relógio quando ouço um cliente a queixar-se de ferrugem na sua coluna vertebral.
- É metal, é normal!
- Sim, mas range quando mexe os braços!
- Já lhes receitei um guarda-chuva. Sei que é difícil encontra-los na farmácia. Desta vez empresto-lhe o meu, mas tente arranjar um até à próxima consulta.

Também assisto ao desfile de casais jovens bem vestidos que sobem a colina para adoptar as crianças que não conseguiram ter. Parece uma visita de cortesia. Madeleine elogia uma criança que nunca chora, que come bem ou que é asseada.
Eu espero pela minha vez, pousado em cima de um canapé. Sou o modelo mais pequeno, quase caibo numa caixa de sapatos. Quando as atenções se viram para mim, começam os sorrisos mais ou menos falsamente comovidos, até ao momento em que um dos futuros pais pergunta:
- De onde vem este tiquetaque?
A médica, então, senta-me nos seus joelhos, desaperta-me a roupa e mostra o penso. Alguns gritam e outros limitam-se a fazer uma careta, ao mesmo tempo que exclamam:
- Meu Deus! O que é essa coisa?
- Se dependesse de Deus, nem havia história para contar. Esta «coisa», como disse, é um relógio que permite que o coração desta criança bata normalmente – responde ela secamente.
Os casais ficam embaraçados e vão conferenciar para a sala ao lado, mas o veredicto nunca varia:
-Não obrigado. Podemos ver outras crianças?
- Claro. Sigam-me. Tenho duas meninas que nasceram na semana do Natal – propõe a médica, quase alegre.

A princípio não me apercebia do que se passava porque era demasiado novo, mas à medida que fui crescendo, comecei a sentir-me como se fosse um cachorrinho defeituoso no canil, o que era humilhante. Pergunto a mim próprio por que razão um simples relógio é capaz de repelir as pessoas a tal ponto. No fim de contas é apenas um pedaço de madeira!
Hoje, quando pela enésima vez a minha adopção é recusada, um paciente regular de médica aproxima-se de mim. Artur é um antigo agente da polícia que se tornou vagabundo alcoólico. O homem é grande e maior seria se se endireitasse. Normalmente nunca diz nada. Curiosamente, gosto do facto de nunca falarmos. Há qualquer coisa de tranquilizador na sua maneira de atravessar a cozinha a coxear, com um meio sorriso no rosto e gesto da mão.
Enquanto na sala ao lado Madeleine atende os casais bem vestidos, Artur bambaleia-me. A sua coluna vertebral range como a porta de uma prisão. Finalmente, o vagabundo diz:
- Não te percebo, pequeno! Na vida tudo passa. Pode levar tempo, mas curamos-nos sempre. Eu perdi o meu emprego algumas semanas antes do dia mais frio do mundo e a minha mulher pôs-me na rua. Imagina que aceitei entrar para a polícia por causa dela. Eu, que sonhava ser médico! Mas como não tínhamos dinheiro…
- Que aconteceu para a polícia não te querer?
- Quem nasce músico, músico morre! Eu cantava os depoimentos enquanto os lia e passava mais tempo no teclado do meu harmónio do que no da máquina de escrever do comissariado. E também bebia, mas só para conseguir um bom tom de voz… mas eles não percebem nada de música, sabes? Acabaram por me pedir que me demitisse. Eu tive a infeliz ideia de dizer à minha mulher porquê. O que aconteceu depois já tu sabes… gastei o pouco dinheiro que tinha em uísque. Foi o que me salvou a vida, sabes?
Adoro a maneira como ele diz «sabes». Artur assume um ar muito solene para explicar como uísque lhe «salvou a vida».
- Naquele famoso dia 16 de Abril de 1874, o frio deu-me cabo da coluna vertebral: o calor do álcool que bebo desde aqueles acontecimentos infelizes me impediu de gelar por completo. Os meus camaradas vagabundos morreram todos. Só eu escapei.
Artur tira o casaco e pede-me que lhe olhe para as costas. Sinto-me pouco à vontade, mas não sou capaz de lhe dizer que não.
- Para ma reparar, a doutora Madeleine enxertou-me um pedaço de coluna vertebral musical, depois de me afinar os ossos. Basta-me bater com um martelo nas costas para tocar o que quero. Soa bem, mas ando de lado como os caranguejos. Podes tocar qualquer coisa sabes – diz ele, estendendo-me um pequeno martelo.
- Eu não sei tocar nada!
- Então espera, vamos antes cantar os dois qualquer coisa.
Artur começa a cantar «Oh When the Saints», acompanhando-se com o seu ossofónio. A sua voz é tão reconfortante como uma lareira numa noite de Inverno.
Quando está prestes a ir-se embora, o vagabundo abre o seu saco e eu vejo que está cheio de ovos de galinha.
- Para que são esses ovos todos?
- Estão cheios de recordações… a minha mulher cozinhava-os muito bem. Quando os cozinho, tenho a impressão de estar outra vez com ela.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Ilustração

Uma ilustração é uma imagem pictórica, geralmente figurativa, embora algumas, raras vezes, também abstracta, utilizada para acompanhar, explicar, acrescentar informação, sintetizar ou até simplesmente decorar um texto. Embora o termo seja usado frequentemente para se referir a desenhos, pinturas ou colagens, uma fotografia também é uma ilustração. Além disso, a ilustração é um dos elementos mais importantes do design gráfico.

São comuns em jornais, revistas e livros, especialmente na literatura infanto-juvenil (assumindo, muitas vezes, um papel mais importante que o texto), sendo também utilizadas na publicidade e na propaganda. Mas existem também ilustrações independentes de texto, onde a própria ilustração é a informação principal. Um exemplo seria um livro sem texto, não incomum em quadrinhos ou livros infantis.

A ilustração editorial tem origens na Iluminura, utilizada largamente na Idade Média nos manuscritos, mas actualmente difere desta por se servir de meios mecânicos (e mais recentemente de meios fotomecânicos e digitais) para a sua reprodução. Portanto, a sua evolução e história está intimamente ligada à imprensa e à gravura.

A ilustração possui uma tradição antiga que remonta às primeiras formas pictóricas, continuando pela Revolução Industrial até a nossa era digital. Actualmente essa tradição tem sido especialmente importante para as histórias em quadrinhos e a animação.

O que distingue a ilustração das histórias em quadrinhos é não descrever, necessariamente, uma narrativa sequencial, mas por sintetizar ou caracterizar conceitos, situações, acções ou, até mesmo, determinadas pessoas como é o caso da caricatura.

Texto para ilustração

(A Mecânica do coração)




Primeiro, não toques nos ponteiros.
Segundo, domina a tua cólera.
Terceiro, nunca, mas nunca te apaixones porque senão,
no relógio do teu coração, o grande ponteiro das horas
trespassar-te-á a pele, os teus ossos implodirão
e o mecanismo avariar-se-á de novo.


Cap.1
Neva em Edimburgo neste dia 16 de Abril de 1874. Um frio terrível, paranormal, que fecha a cidade a cadeado. Os velhos dizem que é capaz de se tratar do dia mais frio do mundo. Dir-se-ia que o sol desapareceu para sempre. O vento corta, os flocos de neve são mais leves do que o ar. Explosões surdas de puro branco! Não se vem mais nada. As casas parecem locomotivas a vapor, o fumo cinzento exalado pelas suas chaminés faz crepitar um céu da cor do aço.

Edimburgo e as suas ruas escarpadas metamorfoseiam-se. Umas a uma, as fontes transformam-se em girândolas de gelo. O velho rio, habitualmente tão sério no seu papel de rio, estende-se até ao mar disfarçado de lago de açúcar glacê. O fragor da tempestade faz um ruído de vidros a quebrar. O orvalho congelado faz maravilhas, cobrindo de lantejoulas os corpos dos gatos. As árvores parecem grandes fadas em camisa de noite, dançando de braços abertos á luz do luar, vendo as caleches a derrapar nas calçadas geladas. O frio é tal que os pássaros gelam em pleno voo antes de se esmagarem no solo. O barulho que fazem ao cair é incrivelmente suave, nem parecem um som de morte.
E é neste dia mais frio do mundo que me preparo para nascer.

A coisa passa-se numa velha casa empoleirada no topo da mais alta colina de Edimburgo – Arthur´s Seat –, um vulcão de quartzo azulado no cimo do qual repousam, segundo se diz, os restos mortais do velho rei Artur. O telhado da casa, pontiagudo, é incrivelmente alto. A chaminé, em forma de faca, aponta para as estrelas. A lua amola nela as suas fases. Nada nem ninguém em redor, apenas árvores.
O interior é todo de madeira, como se a casa tivesse sido esculpida a partir de um enorme pinheiro. Parece uma cabana: vigas rugosas é discrição, janelas pequenas tiradas do cemitério dos comboios, uma mesa baixa talhada no cepo de uma árvore, inúmeras almofadas de lã cheias de folhas mortas fazem lembrar um ninho. Nesta casa acontecem muitos partos clandestinos.
É aqui que vive a doutora Madeleine, a parteira dita louca pelos habitantes da cidade, bastante bela apesar da idade. O brilho dos seus olhos mantém-se intacto, mas o seu sorriso parece falso.
A doutora Madeleine traz ao mundo os filhos das prostitutas, das mulheres desprezadas, demasiado novas ou demasiado infiéis para dar a luz no circuito clássico. Para alem dos partos, a doutora Madeleine adora consertar as pessoas, é grande especialista das próteses mecânicas, dos olhos de vidro, das pernas de pau… encontra-se de tudo no seu ateliê.
Neste fim do século XIX, pouco falta para que a tomem por feiticeira. Na cidade diz-se que mata os recém-nascidos para os transformar em escravos ectoplásmicos e que se deita com toda a espécie de aves para dar origem a monstros.

Durante o longo trabalho de parto, a minha jovem mãe observa distraidamente, pela janela, os flocos de neve e os pássaros a morrerem silenciosamente. Dir-se-ia uma criança a brincar as mamãs e aos papás. Os seus passatempos são melancólicos. Como sabe que não ficará comigo, mal ousa olhar o ventre prestes a eclodir, e quando a minha chegada se torna premente, as suas pálpebras fecham-se sem se crispar. A sua pele confunde-se com lençóis, como se a cama a aspirasse, como se fosse derreter-se a qualquer momento.
Chorava ao subir a colina. As suas lágrimas geladas soavam ao cair no solo, quais pérolas de um colar partido, formando atrás de si um tapete de berlindes brilhantes. A minha mãe patinava, mas continuava, ate que a cadência dos seus passos se tornou demasiado rápida. Os calcanhares emaranharam-se-lhe, os tornozelos vacilaram e ela caiu violentamente para a frente. No interior do seu ventre, fiz um trabalho de mealheiro partido.


A primeira coisa que vi foi a doutora Madeleine. Os seus dedos agarraram-me no crânio cor de azeitona – uma bola de rugby em miniatura – depois encolheram-se, descansados.
A minha mãe prefere desviar o olhar. Seja como for, as suas pálpebras recusam-se a funcionar.
-abre os olhos! Vê chegar este minúsculo floco que fabricaste!


Madeleine diz que pareço um pássaro branco com grandes patas. A minha mãe responde que, se não olha para mim, é porque com certeza não quer que lhe façam uma descrição.
-não quero ver nada, não quero saber de nada!
De repente, qualquer coisa preocupa a médica. Madeleine apalpa-me o torso minúsculo e o sorriso forje-lhe do rosto.
- O coração esta muito duro, acho que esta gelado.
- Já sei, já sei, quem tem coração gelado devo ser eu, uma mãe tão desnaturada…
- Não é isso, o coração dele está mesmo gelado! – replica ela, abanando-me, fazendo um barulho de caixa de ferramentas.
A doutora Madeleine atarefa-se. A minha mãe espera sentada na cama, a tremer, mas já não de frio. Parece uma boneca de porcelana fugida de uma loja de brinquedos.

Lá fora neva cada vez mais. A hera prateada trepa pelas paredes. As rosas translúcidas inclinam-se para a janela, colorindo as avenidas. Os gatos transformam-se em gárgulas, como as garras presas nos algerozes.
No rio os peixes tentam respirar, imobilizados. Toda a cidade está nas mãos de um soprador de vidro que exala um frio que morde as orelhas. No espaço de alguns segredos apenas, os raros corajosos que se atrevem no exterior vêem-se paralisados, como se um deus qualquer os acabasse de apanhar numa fotografia. Levados pela inércia, alguns começam a deslizar, como se num bailado extremo, quase belos, cada um com o seu próprio estilo, quais anjos retorcidos, com as roupas especificas ao vento, quais bailarinas de caixa de musica já quase sem corda, exalando o ultimo fôlego.
Por toda a parte os transeuntes, gelados ou quase, assemelham-se ás fontes. Só os relógios continuam a fazer bater o coração da cidade, como se dada fosse.

«Fartaram-se de me dizer para não vir aqui. Fartaram-se de me dizer que esta velha era maluca», pensa a minha mãe. A pobre rapariga está morta de frio. Parece-me que a médica vai ter mais trabalho com o coração dela do que com o meu… quanto a mim, espero todo nu, deitado em cima de uma mesa, com o tronco estalado num torno de metal. Começo a sentir-me enregelado.
Um gato preto muito velho, com modos de paquete de hotel, encontra-se em cima da mesa da cozinha. A médica arranjou-lhe uns óculos. As armações verdes dão-lhe classe. O animal observa a cena com ar indiferente – só lhe falta um jornal de economia e um charuto.
A doutora Madeleine põe-se a mexer na prateleira dos relógios e tira vários modelos diferentes: uns angulosos de aspecto severo, outros arredondados, outros ainda revestidos de madeira e outros metálicos, pretensiosos atem á ponta dos ponteiros. Com um ouvido, a mulher escuta o meu coração defeituoso e com outro os tiquetaques. Os seus olhos semicerram-se, não parece satisfeita. Parece uma daquelas velhas que levam um quarto de hora para escolher um tomate no mercado, mas de repente o seu olhar ilumina-se.
- Este! – exclama ela, acariciando com a ponta dos dedos as engrenagens de um velho relógio de cuco.
O relógio deve medir cerca de quatro centímetros por oito e é todo de madeira, salvo o mecanismo, o mostrador e os ponteiros. O acabamento é bastante tosco. «Sólido», pensa a médica em voz alta. O cuco, tão grande como a falange de um dos meus dedos, é encarnado e tem olhos pretos. O bico, sempre aberto, fá-lo parecer um pássaro morto.
- Vais ter uma bom coração com este relógio! E fica bem com a tua cabeça de pássaros dez Madeleine, virada para mim.
Não me agrada nada a historia, mas como está a tentar salvar-me a vida , não discuto.
A doutora Madeleine põe um avental branco - está visto, vai mesmo cozinhar. Sinto-me como um frango grelhado que alguém se esqueceu de matar. A mulher vasculha numa saladeira, tira umas lunetas de soldador e tapa o rosado com um lenço. Já não a vejo sorrir. Madeleine inclina-se para mim e faz-me respirar um frasco de éter. As minhas pálpebras fecham-se, tão suavemente como umas persianas numa tarde de verão muito longe daqui. Já não me apetece gritar olho para ela enquanto o sono vai tomando lentamente conta de mim. Nela tudo é arredondado: os olhos, as maças do rosto tão enrugadas como duas maças reinetas, o peito. Uma verdadeira maquina de embalar. Mesmo que não tivesse fome, faria de conta que sim, só para lhe abocanhar os seios.
Madeleine corta-me a pele do peito com uma grande tesoura cujos dentes minúsculos me fazem cócegas na pele. A mulher mete-me o pequeno relógio por baixo da pele e começa a ligar as engrenagens ás artérias do coração. Trata-se de uma operação delicada, minuciosa. Madeleine serve-se de um fio de aço muito fino para dar uma dúzia de nós minúsculos. O coração bate de vez em quando, mas a quantidade de sangue enviada para as artérias é pequena.
- Que branco que é! – diz ela em voz baixa.
Chegou a hora da verdade. A doutora Madeleine coloca os ponteiros na meia noite…não acontece nada. O sistema mecânico não parece suficientemente forte para arrastar consigo as pulsações cardíacas. Por um momento perigosamente longo, o meu coração deixa de bater. A minha cabeça anda á roda, sinto-me como um sonho extenuante. A médica pressiona ligeiramente as engrenagens, de maneira a desencadear o movimento. «Tiquetaque», faz o relógio «bum-bum»,responde o coração, as artérias cobrem-se de vermelho. Pouco a pouco o tiquetaque acelera, assim como o bum-bum. Tiquetaque, bum-bum. Tiquetaque, bum-bum. O meu coração bate a uma velocidade quase normal. A doutora Madeleine tira suavemente os dedos das engrenagens e o andamento do relógio abranda. A mulher acciona de novo a máquina para relançar a mecânica, mas assim que tira os dedos o ritmo enfraquece de novo. Dir-se-ia que acaricia uma bomba, perguntando a si própria quando ira explodir.
Tiquetaque, bum-bum. Tiquetaque, bum-bum.

Os primeiros raios de luz reflectem-se na neve e entram pelas persianas. A doutora Madeleine está esgotada. Eu adormeci. Se calhar estou morto porque o meu coração deixou de bater á muito tempo.
De repente o canto do cuco ressoa tão forte no meu peito que tusso de surpresa. Com os olhos muito abertos, vejo a doutora Madeleine levantar os braços, como se acabasse de conseguir um penálti na final do campeonato do mundo.
A médica sutura-me o peito, como se fosse uma modista cheia de estilo. Não se pode dizer que fiquei estragado, antes que a minha pele envelheceu, que ficou com umas rugas género Charles Bronson, o que me dá uma certa classe. O mostrador está protegido com um penso enorme.
Será preciso darem-me corda todas as manhãs ou adormecerei para sempre.
A minha mãe diz que pareço um novelo de lã atravessado por duas agulhas, e Madeleine responde que assim é fácil encontrar-me caso me perca numa tempestade de neve.

É meio-dia. A médica acompanha a rapariga á porta com um sorriso caloroso, como sempre que há uma catástrofe. A minha jovem mãe avança docemente e, com os lábios a tremer, afasta-se, caminhando como uma velha dama melancólica apesar do seu corpo de adolescente, misturando-se com a bruma, transformando-se num fantasma de porcelana. Nunca mas a vi depois daquele dia estranho e maravilhoso.


Cap.2
Madeleine recebe visitas todos os dias. Os doentes que não têm dinheiro para pagar os serviços de médico «diplomado», quando partem qualquer coisa, acabam por aterrar em casa dela. A médica gosta de mexer nos corações das pessoas e fala com elas enquanto lhes acerta ou concerta os mecanismos. Sinto-me agradavelmente normal com o meu relógio quando ouço um cliente a queixar-se de ferrugem na sua coluna vertebral.
- É metal, é normal!
- Sim, mas range quando mexe os braços!
- Já lhes receitei um guarda-chuva. Sei que é difícil encontra-los na farmácia. Desta vez empresto-lhe o meu, mas tente arranjar um até á próxima consulta.

Também assisto ao desfile de casais jovens bem vestidos que sobem a colina para adoptar as crianças que não conseguiram ter. Parece uma visita de cortesia. Madeleine elogia uma criança que nunca chora, que come bem ou que é asseada.
Eu espero pela minha vez, pousado em cima de um canapé. Sou o modelo mais pequeno, quase caibo numa caixa de sapatos. Quando as atenções se viram para mim, começam os sorrisos mais ou menos falsamente comovidos, até ao momento em que um dos futuros pais pergunta:
- De onde vem este tiquetaque?
A médica, então, senta-me nos seus joelhos, desaperta-me a roupa e mostra o penso. Alguns gritam e outros limitam-se a fazer uma careta, ao mesmo tempo que exclamam:
- Meu Deus! O que é essa coisa?
- Se dependesse de Deus, nem havia história para contar. Esta «coisa», como disse, é um relógio que permite que o coração desta criança bata normalmente – responde ela secamente.
Os casais ficam embaraçados e vão conferenciar para a sala ao lado, mas o veredicto nunca varia:
-Não obrigado. Podemos ver outras crianças?
- Claro. Sigam-me. Tenho duas meninas que nasceram na semana do Natal – propõe a médica, quase alegre.

A princípio não me apercebia do que se passava porque era demasiado novo, mas á medida que fui crescendo, comecei a sentir-me como se fosse um cachorrinho defeituoso no canil, o que era humilhante. Pergunto a mim próprio por que razão um simples relógio é capaz de repelir as pessoas a tal ponto. No fim de contas é apenas um pedaço de madeira!
Hoje, quando pela enésima vez a minha adopção é recusada, um paciente regular de médica aproxima-se de mim. Artur é um antigo agente da polícia que se tornou vagabundo alcoólico. O homem é grande e maior seria se se endireitasse. Normalmente nunca diz nada. Curiosamente, gosto do facto de nunca falarmos. Há qualquer coisa de tranquilizador na sua maneira de atravessar a cozinha a coxear, com um meio sorriso no rosto e gesto da mão.
Enquanto na sala ao lado Madeleine atende os casais bem vestidos, Artur bambaleia-me. A sua coluna vertebral range como a porta de uma prisão. Finalmente, o vagabundo diz:
- Não te percebo, pequeno! Na vida tudo passa. Pode levar tempo, mas curamo-nos sempre. Eu perdi o meu emprego algumas semanas antes do dia mais frio do mundo e a minha mulher pôs-me na rua. Imagina que aceitei entrar para a polícia por causa dela. Eu, que sonhava ser médico! Mas como não tínhamos dinheiro…
- Que aconteceu para a polícia não te querer?
- Quem nasce músico, músico morre! Eu cantava os depoimentos enquanto os lia e passava mais tempo no teclado do meu harmónio do que no da máquina de escrever do comissariado. E também bebia, mas só para conseguir um bom tom de voz… mas eles não percebem nada de música, sabes? Acabaram por me pedir que me demitisse. Eu tive a infeliz ideia de dizer á minha mulher porquê. O que aconteceu depois já tu sabes… gastei o pouco dinheiro que tinha em uísque. Foi o que me salvou a vida, sabes?
Adoro a maneira como ele diz «sabes». Artur assume um ar muito solene para explicar como uísque lhe «salvou a vida».
- Naquele famoso dia 16 de Abril de 1874, o frio deu-me cabo da coluna vertebral: o calor do álcool que bebo desde aqueles acontecimentos infelizes me impediu de gelar por completo. Os meus camaradas vagabundos morreram todos. Só eu escapei.
Artur tira o casaco e pede-me que lhe olhe para as costas. Sinto-me pouco á vontade, mas não sou capaz de lhe dizer que não.
- Para ma reparar, a doutora Madeleine enxertou-me um pedaço de coluna vertebral musical, depois de me afinar os ossos. Basta-me bater com um martelo nas costas para tocar o que quero. Soa bem, mas ando de lado como os caranguejos. Podes tocar qualquer coisa sabes – diz ele, estendendo-me um pequeno martelo.
- Eu não sei tocar nada!
- Então espera, vamos antes cantar os dois qualquer coisa.
Artur começa a cantar «Oh When the Saints», acompanhando-se com o seu ossofónio. A sua voz é tão reconfortante como uma lareira numa noite de Inverno.
Quando está prestes a ir-se embora, o vagabundo abre o seu saco e eu vejo que está cheio de ovos de galinha.
- Para que são esses ovos todos?
- Estão cheios de recordações… a minha mulher cozinhava-os muito bem. Quando os cozinho, tenho a impressão de estar outra vez com ela.